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Um certificado, dez anos de história e muuuita água por baixo dessa ponte...

Um post sobre maternidade solo, sonhos no stand by, trilhar novos caminhos, reencontro e superação de traumas

Depois de UM BOM TEMPO, nada como retomar o blog (porque vida de mãe cansada, né amores?) com uma excelente notícia: eu finalmente prestei o meu exame de proficiência de japonês e adivinhem??? Sim!!!! Essa pessoa que vos escreve PASSOU na prova! Um ótimo motivo para eu vir aqui contar pra vocês e voltar a escrever minhas confissões...


Arrasei, hein!


"Mas quantas horas você estuda por dia?"

Eu ouvi essa pergunta da vietnamita que trabalha comigo depois de mostrar a ela o certificado que recebi ontem, confirmando minha aprovação.


Esse pequeno pedaço de papel tem um valor inestimável para mim. Não apenas pelas portas que se abrem, mas por tudo o que eu tive que atravessar para chegar até aqui. Como o título do post diz, muita coisa rolou, foram mais de 1o anos para esse dia chegar, um divórcio nas costas, ser abandonada por 2 vezes com uma mão na frente e outra atrás sem teto e sem chão, uma filha pequena para criar sozinha, uma doença que abalou minha capacidade cognitiva e um milhão de traumas para curar...


Respondendo à pergunta de minha colega, eu disse a ela que estudava quando dava. Porque na real, mãe faz o que dá quando pode. Se for solo então... Então eu estudava no trem, no banheiro (porque mãe só senta nessas horas), na sala de espera das clínicas e hospitais (isso também merece um post à parte, eu tenho tanto assunto pra pôr em dia que eu nem sei por

onde começar)... Tudo menos em uma

mesa, sentada tranquila com os materiais que eu comprei com essa finalidade. O que me lembra da minha pós-graduação, quando eu estudava enquanto cozinhava a janta, lavava roupa e a louça do café da manhã deixada na pia às pressas antes de sair para o trabalho, fazia as tarefas de casa com a minha filha de então 2 anos e preparava a sua mochila para o dia seguinte.


É preciso explicar aqui que desde a minha última postagem, eu tenho passado por uma verdadeira Via Crucis com o meu adoecimento e desenvolvimento de um quadro conhecido como Disautonomia. Ela se caracteriza entre outras coisas por problemas cognitivos de brain fog, esquecimento, confusão mental, dificuldade em manter a concentração entre outros. Em poucas palavras, hoje eu entendo como se sente uma pessoa com TDAH. Some-se a isso a fadiga crônica e a minha enciclopédia de sintomas físicos, temos as condições ideais para um poço sem fim em que estudar se tornou um verdadeiro desafio, para uma pessoa que sempre adorou fazer isso e aprender coisas novas.


O que me leva à segunda pergunta de minha colega: "Então quer dizer que você trabalha, cuida da sua filha sozinha, da casa, vai direto ao médico e ainda estuda?!!!" 😥


Essa é a minha realidade, fazer o quê? E já se vão exatos 10 anos de maternidade solo (bodas de estanho por sinal, conhecido pela sua maleabilidade e representar a capacidade de adaptação🙂) em que eu tive que aprender a equilibrar mil pratos ao mesmo tempo sem direito a férias nesse caminho solitário, pedregoso e inóspito que é criar uma filha sozinha nesse mundo que não acolhe mães e suas crias. E, por favor, poupem-me dos comentários de "guerreira" porque guerreira é a Shena, eu sou sobrecarregada mesmo. Eu só queria poder me dedicar às coisas que considero importantes para mim sem sofrer um burn out por isso.


No meu post de estreia do blog eu falei sobre o cansaço na maternidade. E sempre que alguém me pergunta "mas cansada de quê" a vontade que eu tenho de sumir em um buraco no chão e só voltar quando as pessoas criarem noção é enorme! Quando você adiciona a essa camada uma doença não-visível mas altamente debilitante como a minha, um mundo inteiro de limitações e frustrações desaba na sua cabeça. E foi no meio disso tudo que, um belo dia, em um impulso eu me inscrevi no exame de proficiência de japonês, o famoso Nihongo Nōryoku Shiken de nível intermediário, o N3 (para quem não conhece, ele é dividido em 5 níveis sendo o 1 o mais difícil e o 5 o mais fácil).


A prova

O teste em si é muito cansativo. Extenso, com intervalos mínimos entre as etapas, é uma prova não apenas intelectual mas de resistência física e mental. O que, convenhamos, para uma pessoa com brain fog é uma combinação letal para o meu Sistema Nervoso Autônomo desequilibrado e pronto para surtar diante do stress. Desde que eu adoeci e expandi meu olhar sobre o capacitismo na sociedade, eu passei a ter um entendimento mais profundo de como todos os processos dentro da nossa sociedade são pautados por padrões que excluem as pessoas com deficiência e/ou doenças crônicas. Submeter-me a esse nível de desgaste teve um preço alto para a minha disautonomia, tanto que ao término das 180 questões e 5 horas de prova, apenas com o café da manhã (pois o local da prova era longe e eu precisei sair cedo de casa), eu simplemente não conseguia me lembrar como eu havia feito para chegar no local da prova nem muito menos como ir embora. E se não fosse por minhe amigue me acalmar por mensagem, eu provavelmente teria surtado no meio da rua. Depois de umas 2 horas descansando no banco de uma pracinha, eu finalmente tive condições de encontrar o meu caminho de volta e ir para casa. Apenas para efeito de perspectiva e vocês poderem entender melhor o quanto isso é complicado, uma pesquisa mostrou que japoneses que sofrem do mesmo problema que eu, devido à confusão mental chegam a confundir a leitura do kanji de 東京 (Tokyo) com 京都 (Kyoto). Não, eu não estou reclamando à tôa...


A jornada de 10 anos

Eu digo isso porque na verdade eu deveria ter prestado esse exame há 10 anos atrás. Pouco antes de eu me divorciar, eu havia pegado firme nos estudos do idioma japonês e frequentava as aulas gratuitas disponibilizadas pela prefeitura da minha cidade realizada por voluntários japoneses. Lembro-me de que eles se sentiam felizes em ver o meu empenho e sempre me incentivavam a prestar o N3, embora eu mesma não tivesse confiança para tanto e pensava no 4 ou mesmo o 5 primeiro. Eles diziam que podiam ver em meu olhar que eu realmente estava me esforçando por aquilo e levando os estudos a sério. E não poderia ser diferente, pois o nascimento da minha filha trouxe novas prioridades para mim e falar o idioma japonês era essencial para que eu pudesse cuidar bem dela.


Mas veio meu divórcio repentino e meu retorno ao Brasil, onde passei 5 anos, fiz a minha especialização em Odontologia do Trabalho e mudei completamente minha perspectiva das coisas e da vida. Ao final desses 5 anos, o retorno ao Japão e a oportunidade de buscar esse sonho antigo voltou com força e novamente pela necessidade de buscar um futuro melhor para mim e para minha filha.


Só que no meio do caminho tinha mais uma nova pedra: a disautonomia. E com ela, estudar se tornou um martírio, as palavras que já tinham uma resistência em ficar na memória, agora se recusam terminantemente a fazerem parte do meu vocabulário. Escrever e ler kanji então nem se fala. O desespero em pegar os livros se tornou concreto e doloroso e o desânimo deu lugar à perda de confiança. Eu não acreditava mais na minha capacidade da qual eu me orgulhava tanto, não apenas para os estudos mas em ser multitarefa e desempenhar com excelência meus desafios e compromissos. Conquistar meu almejado certificado agora parecia mais distante do que nunca.


Inspiração e superação de traumas

Mas ao longo desses últimos anos tenho visto o esforço das minhas amigas vietnamitas aqui no Japão. Das longas horas de trabalho ao cansaço, a obrigação em ter o certificado para conseguirem renovar seu visto me fez olhar para os meus privilégios enquanto nikkei. E me inspiraram também a buscar algo mais para mim (e meu bebê). Se tem algo que eu aprendi nessa vida de imigrante, é que os privilégios não são uma boa zona de conforto. Seja porque ela acaba por te levar a uma posição de vulnerabilidade quando você deixa de investir no seu crescimento, seja porque estar na posição em que já nos encontramos não é exatamente o que se pode chamar de confortável. Instabilidade, insegurança no emprego, maiores riscos comparados com os japoneses, tudo isso são coisas que eu nunca perdi de vista. Mesmo tendo conquistado meu contrato como shain na empresa, ainda assim não deixa de ser um contrato part-time (mesmo que melhor do que o haken por empreiteira - sim, eu disse que rolou muita água em baixo da ponte, e essa mudança foi uma delas). A pandemia exacerbou também a fragilidade do setor turístico diante das crises e eu não posso me dar ao luxo de me sentir confortável nesse lugar.


Para imigrantes no Japão (e em qualquer lugar do mundo) ter certificados de proficiência no idioma local abrem portas, possibilidades, acesso. E embora meu desejo de validar meu diploma de cirurgiã-dentista no país seja praticamente inalcançável (não, não sou pessimista, sou apenas realista diante das condições necessárias para isso) isso não significa que eu não possa buscar novos caminhos tendo o certificado em mãos. Eu não preciso dele para provar que eu consigo me virar no dia-a-dia, até porque eu não acredito nessas formas de avaliação para determinar a capacidade de alguém. Mas infelizmente preciso para abrir as portas que eu busco. É preciso lembrar também que há outros entraves no que se refere a esses exames, para além do capacitismo no seu modelo e forma de aplicação. O próprio custo do exame e o acesso ao lugar da prova podem ser impeditivos para alguém conseguir realizá-lo.


Mas como eu disse, em um gesto impulsivo enquanto eu estava a bordo do trem voltando para casa de mais uma de minhas consultas médicas, eu me registrei no exame. Assim, sem mais nem menos, sem pensar muito. Apenas seguindo meus instintos que me diziam: vai que dá! E eu aprendi também ao longo da vida a confiar muito nos meus instintos. Eu me lembro sempre de um TED Talk em que a palestrante dizia como mulheres normalmente não só se arriscam menos do que os homens profissionalmente como também sofrem com a maior insegurança em relação a suas competências mesmo quando elas concretamente são superiores aos homens. Ela dizia como somos socializadas para sermos perfeitas e a cobrança excessiva (dos outros e de nós mesmas) muitas vezes nos impedem de alçar voos mais altos porque apenas saltamos quando atingimos esse grau de perfeição esperada. E o quanto precisávamos urgentemente mudar essa perspectiva e sermos mais confiantes e audaciosas. Inscrição feita, não havia mais muito a fazer. Eu nunca acreditei em estudar desesperadamente antes de alguma prova mas me esforçar sempre para estar o melhor preparada possível quando ela chegasse. E assim foi...


Superando traumas

Não foi apenas a doença que me atrapalhou nos estudos. Guardar traumas, abusos verbais e psicológicos me fizeram por muito tempo ter um bloqueio em relação ao idioma. Estar com alguém que me dizia que eu não servia pra nada, nem mesmo para cuidar sozinha da minha filha por não saber falar o idioma não era exatamente o que se pode chamar de incentivo da pessoa que você ama (ou pensava que amava). Da impaciência de minha mãe (provavelmente sobrecarregada pelas outras tarefas domésticas) quando eu era criança e pedia que me ensinasse japonês, ao relacionamento abusivo na vida adulta, médicos me descartando em meio a minha luta com a doença me dizendo que não havia mais nada a fazer no meu caso me condenando a uma vida de dores insuportáveis e a cama como refúgio, sofrer preconceito por ser estrangeira ou de quem me diminuía por eu "não ser fluente o suficiente", o fato é que aprender algo novo ainda mais quando se tem uma certa idade é mais do que a dificuldade de aprendizado. É lidar com a falta de tempo, de rede de apoio, de condições financeiras e materiais, de disposição e traumas, muitos traumas! E é sempre incrível como a gente acaba se apegando às críticas mais severas, de pessoas que são as menos qualificadas no mundo e na sua vida para nos criticarem, ao invés de acreditar em quem acredita em nós. Pois o meu impulso em me inscrever na prova também foi um crédito que eu dei a estas pessoas e a mim mesma. E que bom que sempre haverá um outro dia, com novas pessoas, sorrisos e sonhos para te dizerem que sim, você é capaz!


Fonte: vozes da minha cabeça


O certificado, como eu disse, chegou ontem. Eu vi o resultado antecipado há 2 dias atrás pela internet, mas ainda assim eu não conseguia acreditar. Mesmo me sentindo confiante com meu resultado, a maior parte de mim não conseguia ser otimista tendo em vista a enorme dificuldade que eu senti em lidar com o meu brain fog durante a prova. Isso minou a minha confiança como as palavras que eu ouvi um dia das pessoas erradas. Eu não precisava de mais uma decepção a essa altura do campeonato e durante esses meses de espera eu evitei a todo custo criar expectativas sobre o resultado. Eu até demorei para vir a público contar que eu havia feito a inscrição, que dirá a prova. Eu não precisava ter que lidar com a minha e com a expectativa das outras pessoas, mesmo que elas tivessem as melhores das intenções e tentassem me animar. Mais um tombo seria muito para a minha pouca resiliência que restou dos últimos anos. Mas hoje, ao ver a carta na caixa de correio ao sair para o trabalho, foi mais do que a minha aprovação no exame: foi uma carta de alforria das minhas correntes mentais que me prendiam aos meus traumas. Foi o encerramento de um ciclo de 10 anos marcados por muita luta, conquistas importantes e muita ressignificação de dores. Sobretudo da alma. Quem já foi traído sabe o golpe que isso é na sua autoestima, quem já sofreu abuso verbal e psicológico sabe o quanto as feridas sangram em silêncio e longe dos olhos das pessoas. E o quanto tudo isso causa a pior das dores: perder a confiança em si mesma, na própria capacidade. Claro que diante da minha doença e as limitações que ela trouxe, o resultado ficou aquém do que eu era capaz. Nesse sentido, lidar com a frustração de saber que eu poderia ter feito melhor ainda é difícil dentro desse processo de luto decorrente da doença. É sobre toda uma aceitação da pessoa que eu sou agora, que mesmo não sendo a mesma de antes continua dando o melhor possível e se esforçando o quanto pode. E que "só" isso também é digno do meu orgulho por mim mesma. Uma das vietnamitas que tirou o mesmo nível que o meu inclusive me disse que a minha pontuação tinha sido bem maior do que a dela, o que me deixou surpresa e me fez repensar a rigidez com a qual eu tenho me julgado (assunto para outra confissão de uma mãe cansada por sinal). Nesse retorno ao Japão, tudo tem sido um constante teste. Viver em um lugar sem as mesmas conveniências dos lugares com muitos brasileiros, trabalhar apenas com japoneses e depender apenas de mim mesma para resolver todas as pendências, tudo isso tem me desafiado o tempo todo a galgar degraus que eu sequer imaginava ser capaz de alcançar. E esse certificado me trouxe a paz de espírito de me livrar de uma vez por todas do julgamento alheio e do meu próprio, de nunca mais aceitar que meu valor seja dado por outra pessoa que não eu mesma e que sonhos podem sim ser adiados para que aconteçam no momento certo e isso não os torna menos incríveis. Que a maternidade solo nem os filhos não são um obstáculo para a conquista desses sonhos, pelo contrário, eles são a nossa maior fonte de inspiração e força. Até mesmo o olhar de admiração das pessoas quando elas vêem a minha foto no certificado e me dizem o quanto estou bonita nela. O reencontro comigo mesma, antes perdida em um casamento ruim junto com a minha autoestima, as demandas e dificuldades impostas pela maternidade solo em um mundo intolerante e a disautonomia diante de uma sociedade capacitista. Aos 42 anos recém-completados eu posso finalmente respirar fundo e dizer: feliz novo ciclo pra mim! E que ele venha com novos sonhos e portas se abrindo... Espero que hoje você também possa se inspirar em buscar os seus!







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