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  • Foto do escritorHasu

Apropriação cultural rola com japoneses?

Atualizado: 29 de jan. de 2021


Dia desses me envolvi em uma discussão sobre apropriação cultural em um grupo de vendas nas redes sociais (uma moça - branca - anunciava seus "produtos autorais" como seus "kimonos" e em poucos minutos havia uma série de comentários e reações do quanto eram lindos etc - e eram realmente lindos, diga-se de passagem, pelo que eu a elogiei pelo bom-gosto e desejei-lhe muito sucesso, mas me impeliu a chamar sua atenção para sua atitude racista de apropriação cultural, e me respondeu (educadamente) que nunca havia lhe ocorrido isso tendo em vista que a indústria da moda - e a sociedade em geral - não via os japoneses como uma minoria étnica e, portanto, não era passível de ser vítima de apropriação cultural como acontecia com os afrodescendentes; o que apesar da sua atitude muito louvável de ir pesquisar sobre o assunto como eu recomendei, prometendo rever sua atitude e opinião, essa postura condescendente e de estranhamento pelo meu questionamento acabou por me indignar ainda mais frente ao cinismo dos argumentos, ainda que inconsciente e involuntário, e que só veio a reforçar como o racismo contra a raça amarela está impregnada nos meios e é perniciosa disfarçada de admiração e apreço pela cultura japonesa, invertendo o ônus da violência cometida e transferindo a mim o papel de intransigente - vulgo mimimi no vocabulário de alguns - por eu estar levantando o assunto e a minha voz contra a sua atitude, o que é uma reação muito comum quando racistas são confrontados tentando se justificar e defender enquanto estão habituados com

a passividade do outro, quando a eles cabem apenas o papel de escuta e aprendizado para que corrijam a sua postura, porque, sinceramente, estamos cansados de ver pessoas brancas tentando justificar seus privilégios quando deveriam descer de seus pedestais e calçarem as "sandálias da humildade" para reconhecerem sua posição e passarem de beneficiários desses privilégios a aliados da luta antirracista; de modo que não importava se suas peças eram túnicas - ela visivelmente ficou incomodada quando as chamei de robe e prontamente me corrigiu dizendo que não se tratavam de peças íntimas mas não se incomodava em se apropriar da cultura alheia e desfigurar uma tradição milenar que não lhe pertencia, ou mesmo que fossem os vestidos de festa mais caros e finos, não era essa a questão, elas ainda assim não seriam kimonos. Deixando bem claro que essa não era uma crítica ou ataque pessoal a ela, visto que ela não era a primeira nem a última pessoa a fazer isso mas a todo um sistema estruturado sobre o racismo como eu pretendo discorrer aqui) e que trouxe à tona inúmeros questionamentos desse longo processo que venho vivendo em meu retorno ao Japão (e, por sinal, depois de muito tempo desde a minha última postagem - vida de mãe cansada né 😅 e que inclusive renderá outras). Explico.


Volta às raízes


Quando decidi retornar ao Japão, prometi a mim mesma que iria em busca das minhas raízes e a história dos meus antepassados. Coisas que, a meu modo de ver, compõem minha identidade na medida em que minhas características físicas herdadas deles e que tornam não apenas a mim, mas a muitos descendentes, tão distinta da maioria da população brasileira na aparência, na criação e modo de vida. E que, por isso, rendeu-me tantas situações das quais muitas foram negativas e cujo impacto se estendeu por toda a minha vida com consequências na maneira como eu me via e sentia e, consequentemente, relacionava-me com as pessoas. Eu falo de racismo, que muita gente desconhece que japoneses e seus descendentes (como os demais asiáticos de cor amarela) possam sofrer, por ideias distorcidas (pelo próprio racismo, quem diria 😀) que atribuem a nós como "minoria modelo".


Desconstruindo o conceito de "minoria modelo"


É inegável que há muitos privilégios envolvidos nesse conceito, em que nós somos vistos em geral como pessoas honestas, esforçadas e inteligentes, mas o reverso da moeda é algo que muitos ainda desconhecem na medida em que só recentemente têm surgido vozes na comunidade falando a real sobre como é ser rotulado e destituído de personalidade própria e, portanto, individualidade com tudo de positivo e negativo que isso pode trazer. Da cobrança e a necessidade constante de se encaixar nesses rótulos sob pena de ser visto como traidor da raça (como se toda a raça amarela e asiáticos pudessem ser resumidos ou representados pelos japoneses, o que é um outro viés racista quando se ignora a diversidade da cultura entre os diversos países que compõem a Ásia, inclusive a Índia com toda a sua pluralidade de cores e dialetos, adotando japoneses como referência e apagando as demais nacionalidades), até mesmo a falta de vozes ativas de dentro da comunidade e que consigam de fato serem ouvidas pela sociedade, são sintomas ocultos e perversos do silenciamento que sofremos ao longo da História.


Isso é particularmente importante de ser lembrado pois muitos que desconhecem a verdadeira história da imigração de japoneses no Brasil (aqui eu vou me referir aos japoneses por ser esta minha ascendência e não caber a mim ser porta-voz das demais nacionalidades, cada qual com a sua trajetória e suas particularidades que devem ser igualmente respeitadas e narradas por aqueles que de fato a herdaram) têm a errônea impressão de que desde sempre gozamos de boa posição social e prestígio, bem como a atual situação da comunidade nikkey da qual muitos (como esta que vos escreve) decidiram fazer o caminho de volta e sofrem os revezes da vida de imigrante estrangeiro, ainda que seja na terra natal de seus antepassados. Iludidos com diversas propagandas do governo japonês quanto à possibilidade de juntar dinheiro em solo brasileiro para depois retornar ao Japão e ajudar na sua reconstrução, japoneses foram levados para o outro lado do mundo para substituir a mão-de-obra escrava de negros nas lavouras, sendo tratados como suspeitos de serem inimigos da pátria pelo governo da então ditadura brasileira com todas as restrições impostas a eles (como a proibição de se reunirem ou falarem em seu idioma natal, o uso de campos de concentração e confisco de bens), além das humilhações por parte dos brasileiros que se divertiam chamando as mulheres de macacas (por carregarem seus bebês junto a seus corpos como é de seu costume) e aos homens de bodes, oferecendo-lhes até mesmo capim, vindo observá-los em sua lida no campo durante suas jornadas exaustivas como quem vai ao zoológico apreciar os animais exóticos enjaulados para seu deleite e passatempo.


E ainda que muitos neguem, é verdade que seguem olhando para nós assim a despeito da ascensão social de seus descendentes depois de muito esforço e luta dos imigrantes inclusive para garantir a educação adequada de seus filhos e netos, o que viria a ser o meio através do qual essa ascensão se deu e muitos ignoram, como se fosse mera obra do acaso que eles tenham conquistado esses espaços, como se tudo pudesse ser atribuído à magia da genética e não a uma vida de renúncias e sacrifícios. Mas nem todos os privilégios conquistados foram suficientes para apagar essa imagem de "exóticos" e não de iguais, tão brasileiros quanto qualquer outro nascido em solo tupiniquim independente de nossos olhos amendoados e os cabelos escuros.


E onde entra a apropriação cultural nisso?


Desde que os povos começaram a ensejar viagens para além de suas fronteiras, o fenômeno de difusão e miscigenação das diferentes culturas tem acompanhado essas andanças. Com o advento do capitalismo e o desenvolvimento de tecnologias diversas junto à globalização que diluiu fronteiras e barreiras, consumir a cultura alheia foi institucionalizado e aceito como normal, em que a banalização da mesma ignorando todo o significado e a história daquilo que a compõe induzida pelo consumo desenfreado e desprovido de consciência por um sistema capitalista que só visa o lucro (próprio aliás, em que muito raramente se lembra de compartilhar os dividendos com aqueles que de fato possuem os direitos sobre tais peças), tem levado à vulgarização que desfigura, mutila e apaga a identidade cultural de etnias diversas que ao longo do eurocentrismo que fomentou o expansionismo europeu na época das colonizações e expedições marítimas aos demais continentes (sendo mais recentemente reforçada pelo domínio norte-americano no comércio e nas relações globalizadas), e estabelecendo a hegemonia branca como determinadora de padrões e normas.


De forma que a indústria da moda não se portou de forma diferente e os disputados desfiles parisienses não demoraram a "devorar" a cultura nipônica em suas estampas e modelagens, popularizando a estética da Terra do Sol Nascente e disfarçando sua apropriação cultural de "tributos e

homenagens" a essa gente "exótica" de olhos puxados, com uma língua e hábitos estranhos aos ocidentais. Daí para a fetichização de suas mulheres, que passaram a ser vistas como "gueixas" foi um pulo (cujo sentido e imagem também foram totalmente deturpados, transformando a figura dessas verdadeiras artistas que passavam a vida a serem educadas e treinadas para exercerem sua arte, em meras prostitutas ou acompanhantes de luxo no imaginário popular ocidental). Sabidamente mulheres negras e indígenas também conhecem o tamanho dessa violência que nos objetifica e desumaniza enquanto mulheres racializadas, expondo-nos a uma série de abusos e assédios (toda mulher japonesa ou amarela sabe tão bem quanto eu como é ser chamada nas ruas de gueixa, de "passaporte pro Japão" - mais uma ilusão, a de que emigrar para este país trará a solução mágica para os problemas da vida - ou de como alguns homens "sonham" em se relacionar com uma "japinha" pela imagem estereotipada de mulher dócil, submissa e meiga, dedicada à família e ao lar, trabalhadora incansável e eficiente, que nunca reclama ou se antagoniza contra os mandos e desmandos masculinos, com um quê de infantilização pela aparência miúda e frágil como de uma criança - a pedofilização da sociedade manda abraços também - contribui para que muitas de nós sejam submetidas a relacionamentos abusivos e violência doméstica) e que poucos enxergam como tal.


Eu, que já achei bobagem esse tipo de discussão sobre apropriação cultural, fui curar minha ignorância lendo e estudando os argumentos dados por ativistas negros e negras, a partir dos quais pude finalmente transportar essa realidade para a própria cultura dos meus antepassados, na medida em que minhas buscas e pesquisas sobre eles se aprofundavam, bem como minha convivência mais próxima com japoneses, seus hábitos e idioma. O que me trouxe o entendimento sobre a complexidade e a gravidade dessa questão quando ela se impregnou na estruturação da hegemonia branca e normalizou o racismo, de tal modo que mesmo aqueles que sofrem com ele tornaram-se incapazes de reconhecê-lo como tal, a exemplo do meu desconhecimento sobre o assunto e meu pensamento de que o mesmo estava sendo alvo de problematização excessiva por parte dos ativistas antirracismo.


E quem estiver duvidando da gravidade da situação, basta pesquisar no Google a palavra "kimono" e você será inundado por imagens diversas de roupas a fantasias, menos de um verdadeiro kimono tradicional. São robes, túnicas, roupões ou seja qual for o nome que se queira atribuir a essas peças (como as da moça que iniciou todo esse debate, com suas belíssimas peças mas que estavam muito longe de serem um kimono para que ela pudesse requerer para si a "autoria" por aquilo que ela quis chamar de "kimonos" apenas porque a moda ocidental assim determinou), mas muito diferentes de quando você o faz com 着物 (ou kimono devidamente escrito em kanji) e que pouco ou nada se assemelham aos originais para que possam ser assim chamados, mas afinal o que importa é que é bom para o marketing (mais uma vez, é preciso lembrar aqui que no caso da apropriação cultural, os elementos apropriados são vistos como belos e alvo de desejo mas desde que vistos em pessoas outrem que da etnia ou nacionalidade que originou tais peças).


Por sinal, isto é um kimono de verdade!

Desta maneira, embora muitos possam pensar que isso sejam formas de homenagens à cultura japonesa, tão admirada mundo afora, elas não passam de mais uma forma de racismo e apagamento da identidade cultural de meus ancestrais quando não respeita e não contribui para a longevidade nem a propagação da mesma quando a esvazia de seu sentido e seu significado, com pouco ou nenhum valor que não seja a sua mercantilização em benefício próprio. Para não mencionar as diversas "fantasias" de gueixa, que hoje me provocam ojeriza quando as vejo e associo a todos os episódios de assédio que sofri e ainda sofro por ser uma nikkey.






Poxa, eu não sou japonesa mas amo a cultura, então isso significa que eu não posso usar?


Claro que não se trata disso, meu amor! Você pode consumir e usar produtos com a estética japonesa, mas faça isso com consciência e respeito. Japoneses não se negam a compartilhar seu conhecimento e sua cultura, ficando imensamente felizes em ensinar aos estrangeiros suas técnicas artesanais milenares e fantásticas, não apenas na área de vestuários, mas em tudo que forma sua cultura: da gastronomia (considerada inclusive Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade pela Unesco dada a sua importância) à cerâmica e inúmeros outros elementos que encantam pela sua beleza, seu preciosismo carregado de simbologias, que se contrapõem a esse consumo frenético e desprovido de consciência que o capitalismo prega. Por sinal essa foto gentilmente cedida

Foto: arquivo pessoal Claudia Villas Boas

pela minha mana linda, Claudia Villas Boas ao lado de seu querido parceiro e esposo Leo Morita, de seu arquivo pessoal ilustra bem isso (particularmente na minha opinião arrasando no kimono, luxo total, chiquérrima como só ela sabe ser 😍) e provando que o uso de elementos de outra cultura (e os relacionamentos interraciais) não só é lindo e digno mas quando feito com amor e respeito, só traz beleza, valor e propósito inclusive para a luta antirracista e a harmonia entre os povos e suas trajetórias. Eles não são lindos (eu sou fã desse casal gente, vocês não têm noção)?🥰 Beijo, minha loira favorita 😘

Foto: arquivo pessoal

Eu mesma vendo minhas máscaras e demais peças (dos absorventes de pano aos meus estojos e ecobags) com a estamparia japonesa, sendo minha linha especial de máscaras feitas com tecidos preciosamente bordados de Kyoto. Mas eu faço isso com base não apenas na sua aparência, mas com todo o conhecimento que adquiri em minhas pesquisas sobre a cultura de meus ancestrais, que me surpreende todos os dias pela sua profundidade e ao mesmo tempo que me preenche com seus significados e me ajuda a construir a minha própria identidade, me entristece quando vejo como ela foi banalizada e retirada de seu lugar pela apropriação cultural. Como ela serve como um verdadeiro catalisador de marketing para quem a vende sem se preocupar com a sua história, mas ainda somos alvo de racismo e xenofobia em nosso próprio país em especial com a pandemia, que escancarou isso tudo que sempre foi velado e tido como normal nas piadinhas e assédios mas se revelam nas agressões verbais e físicas sofridas desde sempre e com as eleições que exacerbaram os sentimentos ultranacionalistas até a pandemia em que muitos culparam chineses e os asiáticos amarelos em geral por ela.


Do "embranquecimento" de personagens asiáticas em filmes e novelas interpretadas por atores diversos que não sejam asiáticos porque vejam só, diretores dizem que não há artistas asiáticos competentes e de peso suficientes para interpretá-los 🙄🤔🤨😠. Ou seja, somos admirados e todos desejam nos consumir e a nossa cultura, mas não somos bons o suficientes para sermos porta-vozes de nós mesmos. Faz algum sentido para você? Pois é, para nós muito menos.



Mas afinal, e os kimonos?


No Japão sua própria cultura foi desenvolvida com muitos elementos vindos de outros países, em particular a China com a qual o histórico de disputas e guerras é antigo e permanece nos dias atuais com toda a sua rivalidade, a começar pela sua escrita baseada em kanjis e suas religiões, assim como inúmeros folclores e o próprio kimono. Entretanto é preciso pontuar que no início a China estabeleceu forte influência sobre os países asiáticos e não seria diferente em relação ao Japão, com o qual estabeleceu uma relação de vassalagem na qual o Japão inclusive pagava tributos a ela entre outras obrigações, de modo que essa influência passou a ser uma imposição e houve uma adequação japonesa aos modos e à política chinesa e apenas com o rompimento entre os dois países na Era Heian (794-1185) o Japão conseguiu expressar de forma autêntica sua própria cultura e identidade, o que refletiu também nas vestimentas e os kimonos passaram a adotar novas modelagens e tecidos, evoluindo até os dias atuais. Assim, não se pode aqui atribuir a incorporação desses elementos pelo Japão como apropriação cultural, uma vez que não se configura a relação de poder do Japão sobre a China (pelo menos nesse primeiro momento da relação entre os dois países que de amistoso e até de submissão japonesa, passou a uma escalada de tensões pelas disputas territoriais e guerras, que atingiu seu ápice durante o expansionismo do imperialismo japonês e o cometimento de um dos crimes mais bárbaros da História como o Massacre e Estupro de Nanquim durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa)


Voltando aos kimonos, eles são verdadeiras joias dentro das famílias japonesas, extremamente caros com seus tecidos nobres, costumam ser passados de mãe para filha e de geração em geração, e reservados para ocasiões e cerimônias especiais como casamentos, ao atingir a maioridade etc... Eles são tão complexos e difíceis de serem montados que demandam auxílio para serem vestidos de forma adequada, com vários componentes e acessórios para que formem o traje completo.


Uma forma encontrada de democratizar e popularizar o seu uso, devido ao seu custo até mesmo para os japoneses, são os serviços de aluguel de trajes, inclusive em cidades como em Kyoto, onde é possível turistas provarem a experiência de se vestirem com yukatas e passearem pelos pontos turísticos a rigor, tirar fotos e sentir como é vestir uma roupa tradicional japonesa. Inclusive a dificuldade em se movimentar e locomover com ela 😅. Entretanto, com tudo de bom e ruim que eles encerram em si, kimonos são mais do que peças bonitas. Eles representam uma face de uma cultura machista que preza pela feminilidade nas mulheres e acirra debates sobre questões de gênero, especialmente quando sentimos e entendemos que a forma como eles são montados junto ao corpo, limitando movimentos, induzindo a uma postura e até o jeito de caminhar da mulher visto como o "correto" e "desejável" para elas: discreto, contido, delicado. Leia-se submisso, vulnerável, obediente. Como explica Cecília Saito: "AS RESIGNIFICAÇÕES DO KIMONO O kimono não é uma vestimenta de fácil colocação. A pesquisadora japonesa Yasuko Tohyama (1991, p. 193) diz que quando a mulher está vestida com o kimono e sentada em posição reta, seja no tatami (esteira) ou na cadeira, é necessário ajustar ambos os lados da vestimenta ao redor dos joelhos. Além disso, a rígida etiqueta exige cuidados para não expor as áreas abaixo do braço, principalmente devido à fenda nas axilas. Os cotovelos precisam sempre estar numa posição fechada, próxima ao corpo. As pontas dos dedos dos pés e os próprios pés também obedecem a um rígido controle de alinhamento como parte desta etiqueta. Quanto às mãos, estas devem demonstrar cuidado na forma como seguram os objetos, com as duas mãos. É importante controlar o objeto que as mãos estão segurando. O padrão de comportamento de uma mulher que usa o kimono estabelece que não se deve abrir muito a boca, pois isto significa a quebra do silêncio que envolve o kimono. É preciso esconder a boca com as mãos durante a conversação ou enquanto ri ou come. No texto de Tohyama, o que chama atenção é sua análise das relações entre os aspectos comportamentais não verbais japoneses e os elementos da cultura tradicional. Em comparação com as vestimentas ocidentais: [...] o kimono é inconveniente para o comportamento ativo, como o obi que facilmente se desamarra além de tornar-se amarrotado. As pernas também podem facilmente aparecer sobre a cauda do kimono. Esta restritiva natureza do kimono influencia e regula o comportamento não verbal japonês, especialmente para a mulher. (TOHYAMA, 1991, p. 193) A análise de Tohyama aponta para um processo inibidor dos movimentos do corpo da mulher através da vestimenta. Estes padrões de comportamento, que durante centenas de anos teriam reprimido o corpo feminino pelos seus códigos próprios ou, pela submissão às leis bushi, poderiam ter internalizado o “tempo presente” habilitando-o ao desenvolvimento de extensões perceptivas." (SAITO, C. A Cultura Japonesa entre o Kimono e o Gesto no Corpo Feminino Japonês. Revista de Estudos Universitários - REU, v. 34, n. 2, 23 jul. 2009).E ainda assim não se pode resumir essa discussão ao seu aspecto negativo sem lembrar o trabalho minucioso e riquíssimo da arte têxtil japonesa, cujas estampas remetem a significados diversos de seus elementos como o crisântemo, a garça e a famosa flor de cerejeira entre outros, e o valor imenso que carregam para o povo japonês que o veste com todo o seu orgulho de sua nação, tradições e sua identidade.


Sabendo de tudo isso, como chamar uma túnica, um robe ou seja lá o que for de kimono? Como justificar o uso desse termo para definir peças que em nada refletem a sua história, como muitos ainda tentam com "teorias pós-modernas" de "antropofagia cultural" como meio de sobrevivência da cultura expropriada, validando assim o racismo e a violência institucional e estruturada perpetrada pela hegemonia branca nos meios de comunicação, nos hábitos de consumo e no estabelecimento de padrões em detrimento das vozes e identidades das demais etnias?


Seria hipocrisia dizer que japoneses não incorrem no mesmo crime de apropriação cultural em relação a outras identidades como a de países africanos, até pela sua adesão ao sistema capitalista. Mas uma coisa não justifica a outra, e reparações históricas e justiça só serão feitas às vistas da eliminação de toda forma de preconceito racial e xenofobia se a apropriação cultural for identificada e combatida em todos os níveis e formas de manifestação. Seja por parte de quem for. E isso começa por se debatendo e dando vez e voz para que os verdadeiros donos dessas identidades se manifestem e definam por si mesmos como sua cultura deve ser preservada ou modificada para que possa sobreviver ao tempo (ou eventualmente perecer se for este o caso e a sua escolha) como o próprio kimono tem evoluído e se modernizado ao longo da História absorvendo influências e se adequando às necessidades de cada época, em um movimento que nasce de dentro para fora e não como uma imposição feita de fora para dentro como querem os defensores da apropriação cultural que a legitimam de forma despudorada com pretextos absurdos e desrespeitosos, não cabendo a essas pessoas a decisão sobre como se deve fazer isso sem a devida noção de lugar de fala e seu papel como espectadores e coadjuvantes desse processo, não seus protagonistas como querem ser desde sempre sem o devido conhecimento de causa. Estabelecer os limites entre o que é ou não apropriação cultural pode ser muito difícil e delicado e demanda conhecimento histórico e sensibilidade para se compreender as feridas e cicatrizes que cada povo carrega e como eles as relacionam a sua cultura.


Que a diversidade cultural seja celebrada com o respeito entre os povos e pela história e trajetória de cada um, com a promoção da devida consciência e reverência pela sua identidade e preservação, para ajudar na luta antirracista e não para reforçá-la por meio da apropriação cultural. Escutem o que as minorias têm a dizer antes de saírem se justificando, respeitem seu lugar de fala, revejam seus privilégios, sejam humildes. Não é tão difícil assim. Enfim, não seja mais um racista, ainda que enrustido.


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